segunda-feira, 8 de novembro de 2010

As “terceiras intenções” - ideologias - que marcaram e marcam a educação brasileira

 Anésia Maria Costa Gilio

O presente texto corresponde a um capítulo de minha dissertação de mestrado em educação, na Universidade Federal Fluminense UFF, intitulada “Pra que usar de tanta educação para destilar terceiras intenções?” Jovens, Canções e Escola em questão. Este questionamento tomei por empréstimo de Cazuza, na canção “Codinome Beija-Flor”, que, como muitas outras de suas composições, fez grande sucesso na década de 80. Transformei-o em metáfora do meu trabalho – um entre tantos questionamentos que podem ser levantados em relação à instituição escolar.
Muitas foram as reflexões que antecederam este trabalho de pesquisa, tais como as múltiplas formas de expressão dos sentimentos, pensamentos e ações de cada ser humano, determinando suas individualidades, em função da sua visão do mundo. Estamos todos atentos a essa multiplicidade de individualidades no mundo? A escola está atenta?
Além da escola ignorar os estudantes como portadores de memória social e tudo o mais que essa dominação acarreta, ainda são as questões administrativas e os simu lacros curriculares com conteúdos fragmentados, descontextualizados e sempre fiéis ao livro didático, que mais tempo ocupam da formação dos professores. O que, então, está sendo feito para ampliar o tempo das discussões, com esses professores em formação, sobre questões sociais, políticas e éticas que compõem o currículo em seu sentido pleno?
O que é possível fazer se ao professor está sendo negada a condição de intelectual envolvido na tarefa de educar? Existe dicotomia entre a situação do professor e a do aluno? Que professor o jovem quer? Qual, então, é a leitura do jovem estudante sobre a escolarização? Como, então, o jovem reage a tais situações? Como se vê, e vê o outro, seu igual, nos demais grupos sociais em que está inserido? Tais questionamentos surgem em função do que os jornais insistem em mostrar, que muitos jovens estão prostituindo-se, drogando-se, traficando ou pichando. A grande maioria, porém, está buscando realização emocional e profissional - os jornais referem-se a estes? Como, então, os citados nos jornais e os que encontram equilíbrio para alcançar seus objetivos de vida, podem encontrar, na escola, espaço para discutir suas questões? O que é preciso ser feito?
A escola tem a seu dispor a música que está presente no cotidiano. É um recurso simples, dinâmico, contextualizado. É a realidade do jovem entrando na escola. Uma maneira simples de aprender, mas, de forma alguma, se tornará simplista. É uma perspectiva de estudo que poderá ajudar nessa proposta de organização do diálogo entre as disciplinas e fora delas.
Após este exercício reflexivo, delimitei a questão central deste estudo: O que os jovens expressam, por meio da linguagem musical, a outros jovens e que a escola, ensurdecida por inúmeras intenções, parece não entender?
O objetivo da análise proposta foi revelar, para o campo da educação, as intenções dos jovens, com intuito de contribuir “na luta entre o dizer e o fazer em que nos devemos engajar para diminuir a distância entre eles, tanto é possível refazer o dizer para adequá-lo ao fazer quanto mudar o fazer para ajustá-lo ao dizer” (Freire, 1998, p. 91). Assim será possível diminuir a distância entre o que o jovem está produzindo fora da escola e o que se trabalha nela.
Dei, então, mais um passo, buscando sustentação teórica para a proposta da música como uma estratégia pacífica para a cura do ensurdecimento da escola. Entendendo, que esta é o que o professor resolve propor a seus alunos, a partir de uma reflexão sua, independente de qual tenha sido a motivação, mas que de alguma maneira tenha tocado sua emoção. Assim, quando apresentar sua idéia aos estudantes, estará acreditando nela. Não estará copiando algo que deve ser seguido, como os conhecidos simulacros de currículos. Nem estará fazendo o que “achou” bonito o outro fazer. Estará, sim, confiante, esperançoso e bem humorado, carregado de elementos fundamentais para envolver o outro em um diálogo horizontal. Estará, portanto, trabalhando o currículo em seu sentido pleno, seja qual for o recurso usado. Eu propus a música por acreditar que ela está impregnada de questões políticas e sociais, presentes no cotidiano de alunos e professores, abordando temas fundamentais no processo ensino - aprendizagem.
Procurei, também e principalmente, destacar teoricamente As “terceiras intenções” - ideologias - que marcaram e marcam a educação brasileira, capítulo destacado neste texto, como também a linguagem, contextualizada ou não, sua função e ação.
Discutir educação, sem abordar as “terceiras intenções” que permeiam a ação de educar, seria fazer uma abordagem superficial. Posto isso, é necessário entender quais são essas “terceiras intenções”, as várias ideologias, que norteiam o processo histórico da educação brasileira. Antes, entretanto, é preciso apresentar uma explicação preliminar: a educação é aqui entendida como uma prática social, que se processa historicamente, com características e regência de um sistema econômico-social básico. “Mais do que outras instituições sociais, a educação parece estar ancorada a meio caminho entre dois pontos de referência necessariamente ideológicos.” Os que procuram por ela e os que detêm o poder sobre ela. Esta afirmativa foi feita por Ramalho (1976, p. 15), estudo em que busco subsídios para os esclarecimentos que proponho como introdutórios, ao caminhar histórico da educação brasileira e as “terceiras intenções”, que aponto como causas do ensurdecimento da escola.
Sendo, então, a escola, como disse Ramalho (1976), uma instituição ancorada em dois pontos de referência necessariamente ideológicos, cabe nesse momento, apresentá-los: de um lado, ela é um produto da ideologia de seus promotores - o autor chama a atenção de que isso não significa que esses agentes tenham clareza disso. Do outro lado, está o papel que representa como uma instância de sistematização de ideologia. Isso significa que a instituição escolar é um instrumento ideológico para os que detêm o poder de ditar normas a serem seguidas, como também para aqueles que recorrem a ela, buscando soluções para um dia dispor também do poder.
Sobre o termo, ideologia, o autor faz um alerta de fundamental importância: “A ideologia não pode ser compreendida como uma produção meramente conceptual, teórica e intencionalmente livre das práticas econômica e social de seus agentes. Para cada uma delas, a ideologia se confunde com a própria experiência concreta e a traduz, explicando, em última instância, a própria sociedade, do ponto de vista desta experiência.” (Ramalho, 1976, p. 18)
Tais explicações são necessárias pela facilidade com que se define ideologia como sendo um conjunto de conhecimentos ou representações, com que se explica a realidade. Esse conjunto são as legitimações sociais ou produções sociais de classes ou grupos, com interesses concretos, repletos de significados, valores e normas, correspondentes às instituições a que estão ligados. Mesmo que muitos dos que se servem dessa ou daquela ideologia não tenham sempre clareza das intenções dela. Esse é o problema da intencionalidade de significação na produção da ideologia.
Ramalho (1976), diz que a ideologia parece possuir duas funções básicas, para cada uma das classes sociais: “-produzir legitimações sociais organizadas em um modelo capaz de orientar a conduta de agentes de classe social, tanto numa dimensão intraclasse como em dimensões interclasses; -produzir uma explicação das instituições sociais e dela própria, como um todo, reconstruindo, como representação, os seus princípios de articulação, desde o ponto de vista específico e concreto das condições- relações da classe.” (p. 19)
Diz, ainda, o autor que é justamente a coerência dessas funções que possibilitam à ideologia, ocultar e transcender. São essas condutas que melhor traduzem a eficácia e a falácia da ideologia.
Assim como o homem diferencia regiões institucionais de articulação em suas relações com a natureza e com o social, também na esfera da ideologia é possível diferenciar-se regiões ideológicas, com relativa autonomia, como, por exemplo, a ético-religiosa. As regiões ideológicas existem no interior de uma ideologia. A ideologia que legitima uma sociedade é aquela que a classe dominante produz, julgando-se guardiã da verdade.
Ramalho (1976), faz um rápido resgate histórico das sociedades. Nele, delimita a função ideológica do sistema capitalista, comparando-o com outras sociedades. “Fazendo-se uma rápida análise histórica, poder-se-ia observar que, numa sociedade escravagista, a diferença entre as classes sociais é dada como natural. Na formação social feudal essa diferença é dada como sagrada e na formação capitalista, ela é oculta, ou seja, dada como inexistente; ou melhor, é diluida em ex-plicações que retiram da diferença o seu núcleo de antagonismo. A função da ideologia dominante nesta formação social é princi-palmente ocultar, mais do que negar, as relações antagônicas entre classes.” (Ramalho, 1976, p. 23)
Nessa sociedade, o indivíduo é protegido pelo Estado, que funciona como seu tutor. O tutor é aquele que detêm o poder de dar o necessário a todos, inclusive a responsabilidade de seus fracassos. A essa questão, na educação, darei um destaque maior, quando discutir os estudos de Soares (1991).O autor conclui essa parte de seu estudo com uma afirmativa da qual compartilho e que ampliarei a seguir. Diz ele que “é impossível tratar a prática educativa dissociada das ideologias presentes na sociedade” (Ramalho, 1976, p. 26)
Existe, portanto, grande diferença entre o saber que a escola afirma buscar construir e a ideologia que institui o fazer e o agir dessa instituição. A educação, portanto, se dá ancorada a meio caminho entre dois pontos, como afirmou Ramalho (1976).
O que é instituído, em qualquer espaço institucional, é para ser seguido e obedecido. Não precisa ser questionado. Não necessita ser analisado. Não se transforma em saber. São seguidos princípios organizatórios, não explícitos, que regulam as relações. Sendo assim, inicio uma trajetória para buscar maior base teórica para compreender o espaço em que essas idéias, que assumem força de conhecimento, estão inseridas: a instituição escolar.
Paulo Freire (1997) afirma que: “ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica”. Partindo desta afirmativa, Freire (p. 149), diz que: “a realidade dos fatos é diretamente ocultada pela ideologia, que faz uso da linguagem para construir uma névoa que nos faz míopes”. Acredito também que a ideologia dá a essa linguagem uma intensidade de coerência, que provoca o ensurdecimento da escola.
Freire (1997) propõe a morte dessas ideologias que ocultam os fatos. Para que tal proeza seja possível, o autor diz ser importante que se tenha, também, um discurso ideológico que as faça míopes. Pois, fazendo uso dos mesmos recursos, talvez, consigamos fazer com que não percebam que falamos de suas mortes, quando diz: “O discurso ideológico nos ameaça de anestesiar a mente, de confundir a curiosidade, de distorcer a percepção dos fatos, das coisas, dos acontecimentos” ( p.149).
O autor alerta, ainda, os educadores para a única postura que os impulsionará a se resguardarem das “artimanhas das ideologias”, propondo que jamais se fechem em suas verdades, excluindo o outro de suas reflexões. É o exercício crítico de resistir ao que é determinado pelo poder que gera qualidades que se transformam em sabedorias fundamentais à prática docente. Para que esse exercício seja possível é importante que o educador não deixe de viver sua liberdade e responsabilidade perante o outro e o mundo, experimentando-se como ser cultural e histórico, portanto inacabado, e ciente desse inacabamento. Segundo Freire, “na verdade o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital” (Freire, 1997, p. 55). Partindo desses pressupostos, cabe ao educador uma ação de entender-se como sujeito do processo e manter um diálogo com seu interior para romper com medos e angústias, principalmente diante da dificuldade de compreender as contradições observadas na realidade social, provocado pelo obscurecimento que o discurso ideológico faz vigorar.
A proposta de que o educador não se feche em suas verdades; de que faça do exercício crítico, de resistência ao que é determinado, uma rotina; que viva sua liberdade com responsabilidade para com o outro e o mundo; que se assuma como ser cultural, histórico e inacabado e que com esses procedimentos consiga transformar a prática docente em sabedoria, no meu entendimento, é ideológica. É uma ideologia oferecendo resistência àquela que detém o poder. É, portanto, a educação ideológica, como afirma Freire. Em diversos momentos deste estudo, aponto para essa ideologia de resistência, o espaço da utopia. Entretanto, o que discuto como as “terceiras intenções”, que provocam o ensurdecimento da escola, é a ideologia da classe dominante.
Assim sendo, questiono o ensurdecimento da escola, enquanto instituição, mas não pretendo em momento algum, culpar professores, por acreditar que a eles não foi dado o direito de se constituírem como pessoas ousadas e críticas, durante seus próprios processos de escolarização. Cabe, aqui, um resgate do que já foi dito: nem todos que se servem da ideologia têm clareza de suas intenções. É o problema da intencionalidade de significação na produção da ideologia. Quando alunos, entretanto, devem ter criticado ou questionado a ausência de tais objetivos, o que me leva a indagar: os professores lembram-se de que um dia foram alunos?
Enquanto alunos, muitas vezes, acusam discriminação, opressão, classificação, policiamento e expulsão. A continuidade do estudo de muitos destes proporciona a mudança para a categoria de professor. Esta mudança deveria, portanto, merecer também um exercício reflexivo de todos estes, e não só de alguns, profissionais, que permanecem atores nessa instituição em que durante muito tempo foram alunos. A formação escolar e o desempenho na profissão não são apenas dados somados ou adquiridos. Compõem uma relação dinâmica, processual, do que vivemos, aprendemos e ensinamos no decorrer de nossas histórias enquanto sujeitos sociais.
A instituição escolar, composta por muitos escalões hierárquicos, se exime da responsabilidade de se auto-avaliar, não percebendo seu ensurdecimento. Como, então, buscará seu aprimoramento para o “fazer” democrático de ensinar, se ainda não aprendeu a aprender?
Freire (1998) diz que: “como educadoras e educadores somos políticos, fazemos política ao fazer educação. E se sonhamos com a democracia, que lutemos, dia e noite, por uma escola em que falemos aos e com os educandos para que, ouvindo-os possamos ser por eles ouvidos também” (p. 92).
Com Orlandi (1996) amplio a proposta de ouvir e ser ouvido de Freire. A autora sugere um exercício em que basta “deixar vago um espaço para o outro (o ouvinte) dentro do discurso e construir a própria possibilidade de ele mesmo (locutor) se coloca como ouvinte. É saber ser ouvinte do próprio texto e do outro.” (p. 32)
Entendo que o saber se constrói por meio do movimento de ouvir e ser ouvido – “idéias que são produto de um trabalho” - como definiu Chaui (1981, p. 5). Como, então, ainda segundo esta autora, agiremos diante das “idéias que assumem a forma de conhecimento” “idéias instituídas” – ideologia?
Questionamentos como esse, acima levantado, sustentam e alimentam a insegurança que predomina entre educadores, sentimento este que, muitas vezes, os impede de ousar, tornando-os autoritários, distantes da realidade de suas práticas docentes e mais distantes, ainda, de seus alunos. É essa uma postura de defesa que não acrescenta, mas afasta o educador de sua posição de sujeito, transformando-o em mero objeto transmissor de conteúdos curriculares, descontextualizados do universo histórico-cultural em que foram produzidos.
Freire (1998) sugere um caminho de ação diante da situação que vem sendo analisada. Diz ele que: “Diante do medo, seja do que for, é preciso que, primeiro, nos certifiquemos, com objetividade, da existência das razões que nos provocam medo. Segundo, se existente, realmente, compará-las com as possibilidades de que dispomos para enfrentá-los com probabilidade de êxito. Terceiro o que podemos fazer para se for o caso, adiando o enfrentamento do obstáculo, nos tornemos mais capazes para fazê-lo amanhã” (p. 40).
Muitas são as ideologias, absorvidas pela educação, desde o período anterior à Proclamação da República, que ainda estão presentes, hoje, na fala de muitos educadores, como por exemplo: “educação, direito de todos” e “igualdade de oportunidades”. Soares (1991) pergunta se essa é “uma escola para o povo ou contra o povo?” Conforme anunciei, destacarei a partir desse momento a questão da educação em uma sociedade, controlada pela ideologia da classe dominante, concordando com a afirmativa de Ramalho (1976) “é impossível tratar a prática educativa dissociada das ideologias presentes na sociedade” (p. 26). Ampliando tal afirmativa, acredito que só é possível entender a regência ideológica do presente, se entendermos como se constituiu historicamente.
Partindo desses pressupostos, retomo as “terceiras intenções”- as ideologias que marcaram e marcam a história da educação brasileira, espaço onde apenas o aluno é responsável por seus fracassos. É em Saviani (1983) que começo minha trajetória de decifração dessas “terceiras intenções”. Segundo esse autor, foi sobre a base da igualdade que se estruturou a pedagogia da essência, ou seja, todos os homens são iguais e livres: discurso da burguesia, buscando destruir o sistema feudal e iniciar o sistema do modo de produção capitalista. Livres, os homens poderiam vender sua força de trabalho. Mas o capital a compraria se houvesse interesse.
Assim, a burguesia assume o poder, institui-se como classe dominante. A burguesia vai, no século XIX, estruturar os sistemas nacionais de ensino e advogar a escolarização para todos. A intenção é escolarizar todos os homens, converter servos em cidadãos, para que participem do processo político com o objetivo de consolidar a ordem democrática. O papel político da escola ficaria definido: a escola seria o espaço para consolidação da ordem democrática instituída pela burguesia.
Soares (1991) denomina a pedagogia da essência de ideologia do dom, ou seja, a escola como espaço de consolidação da ordem democrática oferece “igualdade de oportunidades” - atendendo ao discurso da burguesia - ; entretanto, o bom aproveitamento dessas oportunidades dependerá da aptidão, do talento e da inteligência do cidadão. Assim, a escola não se responsabilizaria pelo fracasso do aluno sendo seu papel adaptar/ajustar os alunos à sociedade, segundo suas aptidões (dons) e características individuais. Portanto, o fracasso do aluno seria justificado pela sua incapacidade de adaptar-se, de ajustar-se ao que a escola lhe oferece. Segundo a ideologia do dom, não é a escola que está contra o povo, mas, sim, o povo contra ele mesmo, por ser incapaz de responder adequadamente às oportunidades que a escola lhe oferece.
A participação política dos homens livres, entretanto, entra em choque com os interesses da burguesia. Enquanto classe revolucionária que se consolida no poder, a burguesia não caminha mais na direção da transformação da sociedade, negando o movimento da história e passando a reagir contra este. É, justamente, neste momento em que a burguesia se consolida no poder, que propõe a pedagogia da existência em detrimento da pedagogia da essência.
Diante dessa perspectiva, cabe compará-las. A pedagogia da essência prega a igualdade dos homens, enquanto, a pedagogia da existência defende o oposto: os homens não são iguais, são totalmente diferentes e essas diferenças devem ser respeitadas. A legitimação das diferenças vem permitir a dominação, os privilégios, enfim, a desigualdade. Tal mudança prejudica o movimento de libertação do homem, proposto pela pedagogia da essência. Há uma reação de defensores desta postura pedagógica que assume defendendo a igualdade entre os homens e lutando pela eliminação dos privilégios que impedem que a população tenha acesso à educação e às mesmas condições sociais, econômicas e políticas. Nesse momento, a classe revolucionária não é mais a burguesia, mas a classe trabalhadora.
Segundo Soares (1991), após o enfraquecimento da pedagogia da essência ou ideologia do dom, a pedagogia da diferença, ou ideologia das “diferenças naturais”, passou a ser percebida não só entre indivíduos, mas também na constituição da sociedade em classes - grupos sociais, econômicos, dominantes, dominados.
A mudança proposta pela burguesia para melhor conduzir os seus interesses no poder, começa a gerar um novo problema, o fracasso escolar, o que significa que a pedagogia da diferença ou a ideologia das “diferenças naturais”, não mais respondia às necessidades da população, ou seja, a pedagogia da diferença não resiste mais à análise social, política e econômica que se faz presente naquele momento.
A origem das desigualdades sociais é econômica e nada tem a ver, segundo Soares, com as desigualdades naturais ou de dom, de aptidão ou de inteligência. O que está presente naquela explicação é o fato de que a classe dominante apresenta “superioridade” no contexto cultural, em contraste com a “pobreza cultural” em que vive a classe dominada, isto é, o meio em que vive este grupo é pobre, não só do ponto de vista econômico, mas também do ponto de vista cultural - sem estímulos sensórios, perceptivos e sociais. Acompanhando esse raciocínio, surge a ideologia da “deficiência cultural”, remetendo ao sentido de carência, falta e ausência de cultura.
O conceito de “deficiência cultural” surge exatamente na sociedade capitalista em que, na sua organização em classes, predominantemente urbana e industrial, convivem vários grupos, cada qual em diferentes condições materiais de existência. Estes grupos, convivem em uma pluralidade cultural em que se articulam relações de interdependência. Nessas sociedades, os padrões culturais da classe dominante são considerados a cultura socialmente privilegiada e considerada legítima, enquanto os padrões culturais da classe dominada são considerados como uma “subcultura”. É justamente neste ponto que as diferenças entre expressões culturais se transformam em deficiência, carência e falta. É, portanto, no interior da escola, na maior parte das vezes, que se cria o fracasso escolar, por meio de currículos e práticas pedagógicas em que “modelos” criados para atender à classe dominante, desestimulam os jovens das classes dominadas. Este procedimento tem sido apontado como uma das razões para o fracasso escolar destes alunos.
Com relação às pedagogias da essência e da diferença, Gadotti (1987) concorda com Saviani (1983) e Soares (1991), acrescentando que a pedagogia da essência/ideologia do dom é extremamente determinista e mecânica, enquanto a existencialista/da diferença é voluntarista e pessimista. Assim: “O conflito entre as duas correntes pedagógicas (essência e da existência) permanecem no interior da metafísica. Tanto uma como a outra consideram a educação do homem como um ‘caso’ individual; consideram a educação como um ‘bem’ particular, uma conquista pessoal. No primeiro caso teríamos a ‘atualização’ de uma essência pré-dada. No segundo caso, teríamos a conquista de uma essência pela luta individual” (Gadotti, 1987, p.149)
Essas concepções de pedagogia são de base humanista e não geraram grandes debates no Brasil. Enquanto Colônia, a educação no país era responsabilidade dos jesuítas e limitada a um grupo de pessoas pertencentes à classe dominante. Segundo Romanelli (1991), os jesuítas “Humanistas por excelência (...), concentravam todo o seu esforço, (...), em desenvolver nos seus discípulos, as atividades literárias e acadêmicas,(...), ideais de “homem culto” (...), educação dominada pelo clero, (...) visava formar letrados eruditos (...) fechada e irredutível ao espírito crítico e de análise, à pesquisa e à experimentação” (p. 34)
Portanto, um ensino desinteressado sem uma utilidade prática visível, para uma sociedade agrícola e escravocrata. Distante da realidade e importado do Ocidente, era o mais conveniente, pois o estudante nada questionava e obtinha títulos como letrado e inteligente. Os denominados “servidores da ordem” deveriam tornarem-se padres, para estes foram fundados os colégios com o ensino voltado para letras ciências humanas e teológicas, também eles eram da classe dominante.
Entretanto, não se pode perder de vista o objetivo do jesuítas em catequizar, recrutavam fiéis e servidores e criaram escolas elementares para crianças indígenas e filhos de colonos para evangelizá-los. Mas estas questões tornaram-se menores diante da educação da elite. Segundo Romanelli (1991), “dela estava excluído o povo e foi graças a ela que o Brasil se “tornou, por muito tempo, um país da Europa”, com os olhos voltados para fora, impregnado de uma cultura intelectual transplantada, alienada e alienante.” (p. 35) Essa é a base da educação brasileira, sustentada pela desigualdade entre classes. Resistiu à passagem do país de Colônia a Império e deste à república.
No século XIX, com o advento da mineração começa a destacar-se uma camada intermediária, que percebeu a escola como instrumento da ascensão social, o que proporcionava uma aproximação das camadas superiores no exercício de funções burocráticas, administrativas e intelectuais. O ensino que essa classe procurava era o mesmo oferecido à elite. Passaram então a dispor do mesmo ensino duas classes sociais. Essa classe, com seus ideais burgueses, se contrapõe à ideologia colonial e sai vitoriosa com a abolição da escravatura, proclamação da República e a implantação do capitalismo industrial.
Em 1922, em função do centenário da Independência, aconteceu uma série de estudos críticos sobre a situação do Brasil. A Semana da Arte Moderna que veio a criticar a constante cópia de padrões europeus nas artes brasileiras, propondo uma libertação desses valores e consequentemente gerou uma concepção nacionalista. Segundo Paschoal Lemme (1991), foi Euclides da Cunha o percursor deste movimento, quando em 1902, publicou “Os Sertões”, totalmente voltado para questões brasileiras. É também este autor quem afirma que, além do movimento de 1922, existiam as conseqüências da 1ª Guerra Mundial, da Revolução Russa de 1917, o processo de industrialização e a urbanização da sociedade provocando uma modernização da sociedade brasileira, o que levou educadores a discutirem também a modernização de educação. Foi criada, então, em 1924, a Associação Brasileira de Educação –ABE -, que veio a desempenhar papel de fundamental importância para demarcar a autonomia da esfera educacional. A partir de 1927, realizou uma série de Conferências Nacionais de Educação. O mais famoso de seus documentos foi o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova de 1932. Destacaram-se neste movimento, três educadores que Paschoal Lemme denomina “os três cardeais da educação”, são eles: Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho. Estes desenvolveram uma ação progressista, contrária a educação até então existente no Brasil, elitista, jesuítica e autoritária. Diz este autor que prova deste caráter progressista foi a destruição de toda a obra de Anísio Teixeira, pelo movimento militar após 1935. Os pioneiros eram qualificados como idealistas, acreditavam no evolucionismo econômico e são até considerados ingênuos politicamente. Segundo Buffa e Nosella (1991), os pioneiros: “Não pensavam que o capital industrial, antes mesmo de se generalizar homogênea e racionalmente no país, pudesse ser atropelado pelo capital financeiro monopolista, produzindo graves desequilíbrios sócio-econômicos, isto é, ao lado do polo tecnológico altamente desenvolvido, imensos bolsões de miséria. Foi este processo econômico que destruiu os sonhos dos pioneiros.”.(p.65)
Os debates sobre a educação brasileira são paralisados devido à repressão política, em 1935. E, Paschoal Lemme (1991) conclui que “A elitização vem da situação econômica do país e, de forma alguma, da escola” (p. 65). Este educador filiou-se a ABE em 1926. Foi preso em 1935 quando trabalhava com educação de adultos trabalhadores.
De 1935 a 1945 o país viveu sob a ditadura do Estado Novo, sem debates. Durante dois anos, o professor que não queria ser demitido foi obrigado a “fazer uma preleção contra o comunismo, contra o esquerdismo, contra o marxismo, contra a influência estranha.” (Joel Martins, 1991, p. 95).
A partir de 1940, o ensino brasileiro voltou-se também para o ensino profissionalizante com o objetivo de melhor atender a demanda das indústrias.
Os anos 50, segundo Fávero (1983), foram marcados por outras formas e modos de educação, além da escolar. “O Brasil dos anos 50, na aceleração do desenvolvimento econômico e da modernização, foi pródigo no transplante de experiências geradas em outro contexto: extensão rural, desenvolvimento de comunidades, educação de base, educação de adultos” (p.8). Essas expressões, ao ocultarem seus valores reais, funcionavam como uma forma de manipulação populista das classes populares, através da escola e de campanhas educativas.
Mas a reação não tardou. Na década de 60, mais precisamente, do ano de 1960 a 64, diversos movimentos ideológicos e educativos retomaram essas expressões com novos conteúdos; criticaram a educação oficial, acusaram as campanhas de populistas, denunciaram a elitização do saber e o uso político da dominação. Sobre esse período histórico, Fávero (1983) explica que: “o que se denominou cultura popular e que se definiu e defendeu ora como um movimento, ora como um instrumento de luta política em favor das classes populares, surgiu fazendo a crítica não apenas da maneira de como se pensava ´folclórica´, ´ingênua´ a cultura do povo brasileira, mas também e principalmente os usos políticos de dominação e alienação da consciência das classes populares, através de símbolos e dos aparelhos de produção e reprodução de uma ´cultura brasileira´, ela mesma colonizada, depois internamente colonialista” (p. 8).
A política populista de 50, tão criticada em 60, devia-se ao entendimento de que o mais importante objetivo político de investir em educação, mais precisamente na alfabetização, era a obtenção de maior número de votos. Só votavam os alfabetizados e 50% dos possíveis eleitores eram analfabetos. Foi, portanto, o final da década de 50 e início da década de 60, o período em que os movimentos de educação e cultura popular visavam, não só ao número de alfabetizados, mas, sim, à conscientização do povo, para uma participação ativa na vida política do país.
Segundo Buffa e Nosella (1991), o debate educacional, neste período, alcançou um nível teórico-prático insuportável à ordem política correspondente aos interesses do capital monopolista – estatal e multinacional. Assim, os movimentos educacionais são interrompidos e os educadores silenciados com o golpe militar de 1964.
A ditadura militar durou 21 anos. Nesse período, o sistema educacional foi conduzido pela versão ideológica do “desenvolvimento com segurança”. Foi promulgada a Lei 5.692/71 que introduziu a qualificação para o trabalho, ou profissionalização obrigatória, baseada na Teoria do Capital Humano. Segundo Frigotto (1996), essa teoria era considerada a solução para os problemas nacionais e também individuais: “a idéia de capital humano é uma ‘quantidade’ ou um grau de educação e de qualificação, tomado como indicativo de um determinado volume de conhecimentos, habilidades e atitudes adquiridas, que funcionam como potencializadoras da capacidade de trabalho e de produção. Desta suposição deriva-se que o investimento em capital humano é um dos mais rentáveis, tanto no plano geral do desenvolvimento das nações, quanto no plano da mobilidade individual” (p. 41).
Essa teoria, portanto, reafirma que existem diferenças individuais e de classes. Dá a cada homem a certeza de que é “livre” para investir cada vez mais em seu futuro profissional e também social. Assim, caso fracasse, a culpa é única e exclusivamente dele: ou não se dedicou com afinco, ou não tem aptidões, falta-lhe vocação (ideologia do dom/essência).
Com o fim da ditadura militar, o predomínio da Teoria do Capital Humano, que visava o profissional qualificado para a indústria, começa a ser abandonada, sendo substituída por um novo modelo de organização, a sociedade do conhecimento, que propõe uma nova qualificação humana para a área tecnológica.
O objetivo desta revisão histórica advém da necessidade de apontar as muitas situações em que se prega a “igualdade de oportunidades”, reforçando as desigualdades. Também, e principalmente, que em todos os casos, cabe à escola criar possibilidades, transformar, preparar e excluir aqueles que não conseguem acompanhar o processo, mesmo que esse procedimento não seja explícito, induzindo muitas vezes o indivíduo a situar-se à margem do processo social/escolar.
É esse conjunto de situações que denomino “terceiras intenções”, ou as muitas ideologias, que permearam e permeiam a educação, provocando o ensurdecimento da escola. Por mais que os professores estejam atentos, a ideologia do dominador, de muitas formas, está influenciando seus discursos, fazendo-os um composto de vários matizes ideológicos. Um exemplo dessa composição é a ideologia do dom ou essência (prega a igualdade de todos e os fracassos são considerados responsabilidades individuais),que permanece até os dias atuais, inserida no discurso institucionalizado na escola. Tal ideologia foi importada pela educação brasileira em período anterior à Proclamação da República-criticada e rejeitada pelos Pioneiros da Educação, nos anos 30, absorvida pela Teoria do Capital Humano, nos anos 70, e perpetuada, em 80/90, na sociedade do conhecimento.
Torna-se difícil, portanto, criticar o professor que culpa o aluno pelos fracassos sem sequer questionar sua prática e seu discurso pedagógico.
Segundo Bakhtin (1997a), o discurso se dá com a palavra, que é sem dúvida, o recurso privilegiado da comunicação. A ela, é conferido um importante lugar na constituição da consciência, é um signo ideológico por excelência. Marca as mais simples relações sociais, nos sistemas ideológicos constituídos, como na ideologia do cotidiano. Entendo que mesmo a escola sendo uma instância pública de uso da linguagem (Geraldi, 1996, p. 39-40), a ideologia cotidiana está entranhada no sistema lingüístico ideologicamente constituído. Segundo Bakhtin, é na ideologia cotidiana que se formam e se renovam as ideologias constituídas. Não seria, então, a ação de questionar a prática e o discurso pedagógicos, um exercício em busca de uma renovação, que deixasse de atribuir ao aluno toda a responsabilidade de seus fracassos?

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