terça-feira, 9 de novembro de 2010

BRINCAR E OBSERVAR, AÇÕES E ADMIRAÇÕES: Uma reflexão sobre o adulto construído na infância

Anésia Maria Costa Gilio


“A única coisa de que precisamos para nos tornar bons filósofos é a capacidade de nos admirarmos com as coisas” (Gaarder, 2000, p.22)
Este estudo se baseia em observações e reflexões sobre o fazer pedagógico na educação infantil. Ao contrário dos adultos, as crianças vivem constantes processos de admiração: “Para as crianças, o mundo – e tudo o que há nele - é uma coisa nova; algo que desperta a admiração. Nem todos os adultos vêem a coisa dessa forma. A maioria deles vivencia o mundo como uma coisa absolutamente normal” (Gaarder, 2000, p.30)
O sentimento de “normalidade” que se observa no mundo contemporâneo se associa a um estado de desesperança e desânimo. A história, segundo Kosik (1976), é dialética de liberdade e necessidade. (...) a liberdade é necessidade compreendida” (p.213). Porém, o individualismo hoje dificulta o exercício da liberdade de defender da necessidade que gera permanente contestação. Assim, o desânimo está na dificuldade de compreender a necessidade defendida mas não instituída. Segundo Boff (2000), muitos passam a acreditar que são eles incapazes de convencer ou de fazer-se compreender. “Outros perderam a própria fé na capacidade de regeneração do ser humano e de projeção de um futuro melhor. Vêem no ser humano mais a dimensão de demência do que de sapiência. Resignaram-se na amargura. Depois da vida há coisa pior do que perder o brilho da vida?” (p.20)
Perder o brilho da vida é deixar de admirar-se com as coisas, perder o sabor dos porquês, acomodar-se, alienar-se, aceitar passivamente o instituído, tomar o fenômeno como essência, não se surpreender com a descoberta e entusiasmo do outro.
Muitos professores se comportam dessa forma e não estão atentos à importância de se perceberem pesquisadores ou filósofos. Apenas reproduzem procedimentos, sem reflexões. Diante dos questionamentos das crianças, respondem objetivamente, sem formular hipóteses possíveis, na busca da construção do conhecimento. Não procuram saber o que outros professores realizam ou propõem. Já que a sociedade contemporânea é definida como a da comunicação, “a leitura do que outras pessoas pensaram pode nos ser útil quando precisamos construir nossa própria imagem do mundo e da vida” (Gaarder, 2000, p.25)
Por tudo isso questiono a burocratização do fazer pedagógico de alguns professores da educação infantil, que impede o admirar-se e o brincar com seus alunos, presos a simulácros de currículos que afastam as crianças da escola. A instituição de ensino foi transformada em um espaço de obediência, distante da realidade, da cumplicidade na responsabilidade de ensinar e aprender.
Compreender a realidade é algo essencial no ato de ensinar. Exige ações constantes de ver, ouvir e falar, que são movidas, segundo Madalena Freire (1993), pelo desejo de vida, que é contrário ao desejo de morte: “quando sonhamos com um espaço onde não existem conflitos, nem diferenças, nada em desequilíbrio, nada em movimento, processo, transformação; tudo jaz na perfeita e absoluta calmaria do homogêneo massificado”. (p.13)
O desejo de vida vai além da busca dos educadores em criar estratégias que possibilitem o aprendizado do aluno. Ele é um fazer político/crítico, de perceber a realidade social, econômica, cultural e histórica na qual o aluno está inserido. Esta percepção só é possível na constância do ver, ouvir e falar. São essas ações que possibilitam o conhecimento concreto da realidade posta e não aquela que a escola quer ver. Compreender a realidade e buscar formas de transformá-la é respeitar o aluno. “Em nome do respeito que devo aos alunos não tenho por que me omitir, por que ocultar a minha opção política, assumindo uma neutralidade que não existe. ” (Freire, 1997, p.79)
Vinculada ao exercício de desvelar a realidade está a forma com que se direciona o olhar, a ação, do ver. Não só com palavras acontece o diálogo. Crianças e adultos também se comunicam com posturas corporais - o corpo fala. Crianças são bons filósofos, admiram-se com transformações na postura do adulto. Fazem perguntas como: “Você está triste?...” A sensibilidade presente no olhar da criança se desfaz quando, esta, entra no mundo adulto. Os adultos precisam que amigos revelem que não estão bem. Não mais se admiram com as transformações. Daí a importância de adultos e professores, reeduquem seus olhares. Assim poderão compreender a realidade e buscar formas de transformá-la, respeitando o aluno, percebendo o não dito em seu discurso, mas declarado por seu corpo.
A partir destas reflexões e da necessidade de admirar-se sempre, priorizada neste estudo, reporto-me a autores que resgatam a história da infância no Brasil, a partir do século XIX. Isso possibilita uma maior compreensão do presente ou talvez a oportunidade de admirar-se com o passado desconhecido. Civiletti (1988), conta, que um certo fazendeiro do Maranhão inventou o tejupabo, “buraco cavado na terra onde a criança era colocada até a metade do corpo” (p.63) e a mãe era obrigada a deixá-la permanecer ali durante toda a jornada de trabalho. Esta autora chama a atenção para o papel secundário da criança nas famílias dos colonizadores, vista como mais uma pessoa a serviço do poder paterno. Um filho saudável e educado valia mais do que dois escravos, o que justificava que se investisse nele. Essas crianças, somadas ao número de serviçais do poder paterno, não dispunham do conhecimento instituído na sociedade da época, mas admiravam-se, imaginavam, brincavam.
Menezes (1977) narra fatos da vida de José de Alencar, que nasceu em 1º de maio de 1829, em Alagadiço Novo, pequena vila próxima a Fortaleza. “A criança, fraca nos primeiros tempos, alimentada com leite de cabra, é miúda e vivaz. Comanda, em breve, a legião de pequenos que brincavam, no terreiro, à sombra do oitão, com ossos de reses, que, na imaginação infantil, figuram como grandes boiadas, ou “sumia-se o dia inteiro, metia-se no mato...”. (p.28) Os ossos de reses, que se transformavam em grandes boiadas na imaginação da criança, mostram que independentemente do objeto, de sua forma, tamanho ou cor, marcam o lugar que a ela convém. Ações como essas, não se perderam no tempo, sempre fizeram e fazem parte do processo de desenvolvimento e aprendizagem das crianças. Nenhum adulto ensinou. As crianças criam na ação do brincar.
Castro Alves, conhecido como o “poeta dos escravos” nasceu em 14 de março de 1847, na Bahia. A ação de admirar-se na sua infância estava em ouvir a mucama Leopoldina contar “as lendas da África longínqua, enquanto escondiam com sua bondade a realidade sangrenta dos escravos na América.” (Menezes, 1977, p.26) A infância de Castro Alves foi feita de muitas outras admirações, como pelas lutas, traições, vinganças e histórias de amor, que marcaram tanto o momento histórico do país como a vida familiar do escritor. Na infância de Castro Alves há, também, a ação do brincar, como correr pelos quartos da casa, brincar, nos vários salões, “esconder-se nos armários fixos da sala de jantar, tomando cuidado para não quebrar os vasos de porcelana, não danificar a coleção de quadros do Sr. Alves, nem chutar as escarradeiras de louça dourada, subir à velha torre para contemplar o mar” (p.41) Nas férias, no sertão, mais admirações: “banhos de lagoa, frutas do mato, ninhos de pássaros e cavalgadas malucas à beira do rio, assustando as mulheres que se banhavam nuas e despreocupadas. (p. 36)
Ao reportar-me aos depoimentos que se seguem, dou um salto no resgate da história e chego ao ano de 1882, quando nasceu Monteiro Lobato, em 18 de abril, na cidade de Taubaté. Juca, como era chamado, era um menino quieto, brincava muito com suas duas irmãs mais novas. Costumavam brincar com bonecos de sabugo, segundo relata Cavalheiro (1962), “Tomavam sabugos de milho e os vestiam como se fossem bonecas. Ou então, chuchus, aos quais punham pernas de palitos, e assim eles ficavam sendo os “cavalos”, os “porquinhos”...As crianças, anotou o próprio Lobato, ‘desadoram os brinquedos que dizem tudo, preferindo os toscos onde a imaginação colabore. Entre um polichinelo e um sabugo, acabavam conservando o sabugo. É que este ora é um homem, ora uma mulher, ora é carro, ora é boi – e o polichinelo é sempre um raio de polichinelo’” ( p.7)
Continuando a busca da ação de admirar-se na infância, encontro Villa-Lobos, que nasceu em 1887. Segundo Barros (apud MEC/DAC/ Museu VILLA-LOBOS, 1972), seu pai, professor Villa-Lobos, recebia artistas e cientistas “que lá iam tocar e ouvir os melhores autores”(p.7). Quando estas reuniões eram destinadas à música, atraíam o menino, “ele, muito menino, às vezes, descia, pé ante pé, de camisa de dormir – (naquele tempo não se usava pijama) – e vinha esconder-se no escuro, em baixo da escada para ouvir”(p.7)
Entrando no século XX, mais exatamente em 1901, nasce Cecília Meireles, que deu o seguinte depoimento: “Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar”. , (Perez, 1971, p.54) No entanto, a infância de Cecília Meireles não foi triste. Peres resgata outra fala da escritora: “Se há uma pessoa que possa, a qualquer momento, arrancar da sua infância uma recordação maravilhosa, essa pessoa sou eu.” (p. 54)
Diz este autor, que nessas recordações estão: “visões ou sensações que vão de uma chuva ou de um céu estrelado à descoberta do eco (importantíssima a sua descoberta do eco), ou à percepção aguda de detalhes de paisagem – uma fruta, um bicho, um aroma. Nessa infância também tem muita importância as histórias ouvidas – folclore português açoriano, transmitido pela avó, mulher culta, muito mística, - folclore brasileiro ensinado pela pajem Pedrina. Folclore que a escritora amará e por cujo estudo se interessará profundamente”. (p.54)
O silêncio e a solidão possibilitaram a Cecília Meireles, o admirar-se com as coisas simples a sua volta, descobertas repletas de encantamentos que vivem as crianças e comuns para os adultos.
Em 1904, no bairro do Méier, Estado do Rio de Janeiro, nasceu o educador brasileiro, Paschoal Lemme. Em suas memórias (1988), busco as alegrias das crianças, jogos e brincadeiras que se intensificavam no mês de junho. Resgato o que acontecia no período de 1906 a 1912, ou melhor, dos 2 aos 8 anos de idade, de Paschoal Lemme. Os pais tinham muitas atribuições o que dificultava os passeios ou “lazeres externos”. Os jogos de “pega-pega” aconteciam dentro de casa, provocando alguns acidentes. Para as crianças daquela época, as festas juninas eram mais importantes do que o Natal, festa religiosa, e o Carnaval, festa para adultos. Era o mês das férias escolares e as festas juninas “empolgavam” adultos e crianças. Era costume fazer fogueiras e barraquinhas nos quintais e nas ruas e balões.
“O céu ficava literalmente crivado de pontos luminosos, numa féerie deslumbrante; as correrias pelas ruas, os magotes de crianças e adultos, armados de paus e pedras para “tascar” os que desciam e se apagavam. Freqüentemente, estalavam conflitos de conseqüências bastante graves entre os “tascadores” dos balões. Nas manhãs frias e orvalhadas de junho, saía-se à procura dos balões apagados, caídos durante a noite, e, vitoriosamente, trazia-se para casa aquele acervo de papel colorido, amarfanhado, molhado pelo orvalho, enegrecido por dentro, pela fuligem do querosene.” (Paschoal Lemme, 1988 v1,p.30)
Um fato marcou de admiração a infância de Paschoal Lemme: em 1908, com a comemoração do centenário da abertura dos portos pelo príncipe D. João, surgiu no céu um balão “do tipo “Bleriot” emocionando a criança com quatro anos que observava da janela as evoluções do aparelho. Em 1910, com seis anos, admirou-se com o céu e a terra. No céu via o cometa Halley que fazia sua aparição e na terra ouvia a revolta da Marinha de Guerra. Em razão da distância de sua residência do centro onde aconteceram os conflitos, só há referências de tiros de canhões que atingiram a cidade, disparados pelos navios rebelados.
Diferente da infância movimentada de Paschoal Lemme, sempre em grupos, com festas juninas, balões e barraquinhas, pregões, brinquedos cíclicos e cometa, foi a infância de Adalgisa Nery, escritora brasileira que nasceu no ano seguinte,1905. Segundo Perez (1971), ela era de família desfavorecida economicamente, o que impossibilitava a compra de brinquedos e não tinha companheiros para brincar. Assim, caminhava pela casa questionando e buscando justificativas para os nomes dos objetos. Aos quatro anos, já dava mostras de sua sensibilidade poética, na ação de admirar-se: “aproximando-se de duas árvores que ladeavam a entrada da casa - um pé de magnólia e um de cravo-da-índia - aspirava intensamente os odores penetrantes – e, verificando não ser observada – estendia-se no chão entre os troncos e aguardava o acontecimento: sua transformação em árvore. Queria ser árvore e ali, imobilizada, acreditava que o milagre se processaria.” (p.3)
A infância comportada de Adalgisa Nery é quase oposta à infância de Vinicius de Moraes, que nasceu em 1913, na Gávea, Rio de Janeiro, um menino travesso, que já nasceu em meio à boemia e à poesia. O Embaixador da Canção, como ficou conhecido, ganhou de seu pai, que se aventurava em buscas de fortunas rápidas, um soneto, comemorando seu nascimento, mesmo antes que isso acontecesse. Vinicius de Moraes foi uma criança “inquieta” e “endiabrada”, que construía estória cheias de aventuras e heroísmos.
Depois de muito brincar no quintal, entrava na biblioteca do pai, “para mergulhar em outros mundos” e integrar-se no futuro no mundo da poesia. “Para Vinicius, os versos de uma canção não conseguiam se sustentar sem a melodia perdiam o sentido. Da mesma maneira, ele achava que uma música podia asfixiar um poema, que não precisava de mais nada além das palavras. Mas, em seu caso tanto a letra da música quanto o verso literário vertiam da mesma mina. (MPB Compoitores, 1997, p.4)
No ano seguinte ao nascimento de Vinicius de Morais, em 1914, nasceu Dorival Caymmi. Este se recorda que cresceu “em meio a mestiçagem, ao sincretismo religioso e à miscelânea cultural. E é claro, em meio à música”(MPB compositores, 1996, p.2) Essas vivências são marcantes nas composições de Caymmi, mas, é o mar que tem maior destaque em toda a sua obra. Uma admiração vivida na infância que influenciou a obra de um poeta. “Eu queria ver o mar. Subi num monturo para alcançar o muro. Cortei o pé num caco de vidro”(p.3) Ele viu o mar e passou a conviver neste cenário, observando e conversando com pescadores. Transformou tudo isso em canções.
Ao refletir sobre a transformação do brincar e do admirar-se em ação real, reporto-me a um outro educador, Paulo Freire que nasceu em 19 de setembro de 1921, no bairro Casa Amarela, em Recife, Pernambuco. Freire referiu-se inúmeras vezes ao brincar que mais lhe causou admiração. Aprender a ler e escrever, com gravetos sendo usados para riscar a terra. “Minha alfabetização não me foi nada enfadonha, porque partiu de palavras e frases ligadas à minha realidade, escritas com gravetos no chão de terra do quintal” (Freire, apud Gadotti, 1997, p.31)
Anos se passaram desde a década de 20, quando Freire, já alfabetizado, entrou para a escola regular com seis anos de idade, época de boas recordações, junto à professora Eunice Vasconcelos, que lhe propunha que escrevesse muitas palavras que conhecia e depois formasse sentenças. Quando em 1994, sete décadas depois, em companhia de Adriano Nogueira e outros educadores em um encontro informal, formulou a definição da verdadeira pedagogia, que destaco a seguir: “A verdadeira pedagogia é a arte de fazer da curiosidade algo metódico e permanente. É assim que o ser humano conhece e se reconhece. É importante aprender a aprender para que nossas aulas não se transformem em velhas e enfadonhas lições”. (Freire in Nogueira, 1994, p. 13)
Em minha leitura, a ação de admirar-se em Freire, está no conhecer e se reconhecer. Essa marca da infância delineou toda a sua trajetória de educador. O respeito dado ao que conhecia, facilitou reconhecer-se como um sujeito com amorosidade suficiente, para propor a educadores que partam do conhecimento de seus alunos, para que estes possam se reconhecer no espaço cultural, social e político do país.
Lygia Fagundes Telles, que nasceu dois anos depois de Freire, em 1923, admirou-se durante o brincar. Segundo Perez (1971), com cinco anos de idade, ia à igreja, toda tarde, a fim de pegar cera para fazer bonecos. Em uma dessas tardes encontrou no centro da igreja, um homem morto em um caixão. Fugiu assustada para casa e as primeiras explicações lhe foram dadas pela empregada. Sua questão era se ela também ficaria como aquele homem. Mais tarde, seu pai deu novas explicações, mas a impressão inicial não se desfez. Na obra desta escritora, a morte tem presença marcante.
Lucia Maria da Costa Campos, professora da Rede Pública de Ensino do Município de Niterói, Estado do Rio de Janeiro, nasceu em 1942, no Município de Santo Antônio de Pádua (RJ). Em sua infância o que mais lhe causou admiração foram as ações solidárias realizadas por seu pai, o advogado Leonel Homem da Costa, secretário de Educação do Estado do Rio de Janeiro na década de 50.
“Meu pai se preocupava em ajudar as pessoas, economicamente desfavorecidas, com seus documentos, possibilitando o exercício da cidadania. Eu percebia o quanto era importante, para essas pessoas que desconheciam a necessidade de cumprir com as obrigações civis, ter estes documentos. Isso possibilitava mais fácil acesso à educação, à saúde e ao mercado de trabalho”.
Após 15 anos de trabalho na Rede Pública, Lúcia Maria voltou a estudar, fazendo o Curso Normal Superior no Centro Universitário Plinio Leite. Em seu trabalho monográfico de conclusão do Curso, “De volta à escola: uma evolução da nossa sociedade”, ela discute a reintegração daqueles que abandonaram a escola por inúmeros motivos e que retornam anos depois na busca de certificados, uma alternativa para não serem colocados à margem da sociedade.
Maria do Carmo Maiolino Pinto, professora da Rede Particular de Ensino do Município de Niterói, nasceu em 1957, nesta cidade. Como Lúcia, ela fez o Curso Normal Superior no Centro Universitário Plinio Leite. Seu trabalho monográfico de conclusão de curso intitulou-se “ A importância da ação de ler”
“Mesmo desconhecendo os códigos alfabéticos, sempre lia estórias através dos olhos de meus pais, ou seja, o hábito de ouvir e contar estória estavam presentes em minha família. Nesses momentos dedicados às estórias, existia o que hoje defino como a ação de projetar o futuro, que acontecia da seguinte forma: não tínhamos carro e nem tampouco possibilidades de adquirir um naquela época. Meu pai, então, inventava estórias que no presente, contavam o futuro. –‘ Já temos nosso carro, vamos sair para um passeio... ’. Todos sentados no sofá. Assim, meu pai dirigia o carro, e narrava tudo que estávamos vendo no decorrer da viagem. Assim chegávamos e nos divertíamos nos mais diversos lugares. As estórias acabavam quando retornávamos da viagem para casa. (Pinto, 2001, p.9)
O brincar na infância da autora era uma ação familiar. Liam o mesmo texto cuja ilustração estava no significado dado por cada um dos envolvidos, acionando a imaginação. Esse movimento, uma brincadeira, fez da autora um sujeito leitor, que tenta mostrar aos sujeitos à sua volta a importância dessa ação.
Esses rápidos relatos sobre personagens do cenário brasileiro me possibilitaram um exercício reflexivo sobre o brincar e o observar, entendidos como ações e admirações, vividas por crianças até os oito anos de idade. Partindo desses pressupostos, cabe a pergunta: é a infância do sujeito que determina sua vida adulta?
Este estudo, entendido como uma amostragem, porque, me refiro à infância de apenas 13 (treze) brasileiros, direciona minha resposta para o sim. Percebendo essa hipótese como verdadeira, urgente se faz um olhar mais atento para a infância, mais precisamente, para a educação infantil.
Hoje o brincar já não acontece na rua e sim em casa e na escola. Os que se dedicam à educação infantil estão atentos para a ação de admirar-se de seus alunos?
O brinquedo e a brincadeira fazem parte da história de vida dos brasileiros citados e de muitos outros. Segundo Leal (1982), jogos e brincadeiras são e devem ser sempre o ponto de partida. “A brincadeira é a principal manifestação da criança e deve ser levada em conta não só nas classes de alfabetização, mas em todas as séries iniciais. As crianças faveladas, particularmente, articulam todo o seu universo, os seus desejos, a sua sexualidade, o seu desespero, a vida e a morte em brincadeiras coletivas.” (p.11) Investigando os tipos de brincadeiras, Leal relata: “Encontrei quase vinte maneiras diferentes de pular carniça, inúmeras formas de brincar de esconder, de correr, de “colar”, de polícia e ladrão, de vivo-morto etc. Observei que, sozinhos no mundo (crianças da favela), esses seres, essas crianças, eram capazes de se combinar e de seguir regras comuns. Na escola, porém, ficavam inteiramente tolhidas, sem iniciativa, e suas brincadeiras eram sempre caóticas e sob a censura ou olhar do professor, perdiam a espontaneidade.” (Leal, 1982, p.11/12)
Muitas são as situações em que sujeitos se admiram. As resgatadas neste estudo foram positivas. Esta afirmativa é entendida como possibilidades de uma vida de realizações. Várias outras admirações, entretanto, marcam o cotidiano infantil, de forma negativa a seu bem estar físico e social. A pressa e o excesso de compromissos do mundo contemporâneo ajudam a criar entre o adulto e a criança uma relação vertical e autoritária, que também produzem admirações, sejam positivas ou negativas.
A educação não é a solução para os problemas políticos, econômicos e sociais vividos no contexto nacional, mas não existe solução sem ela. Neste momento, é necessária maior atenção para a formação do educador que atua ou atuará nos primeiros anos de escolaridade. Contratam-se professores não habilitados, por ser economicamente mais viável, “já que é SÓ para brincar com as crianças”. Infelizmente, essa postura é comum entre donos de escolas, pais ou responsáveis pelas crianças na faixa etária da educação infantil. Muitos dizem: “para brincar, qualquer escola serve.”
Entender que a escola é o espaço de proporcionar à criança a oportunidade de se constituir enquanto sujeito social e cultural, respeitando a individualidade e a diversidade é fundamental para se trabalhar a admiração. Incentivado a desenvolver o desejo de ser, que se constitua neste espaço o desejo de vida proposto por Madalena Freire (1993): uma constante busca de se conhecer e conhecer o outro, mesmo que para isso seja necessário muito barulho, risos, brincadeiras, felicidade.
Afirma-se no senso comum que crianças precisam ser “podadas” para que o adulto não perca o controle sobre ela. Nega-se a ela o direito de ser, antes mesmo de aprenderem que podem ser. Ainda segundo Madalena Freire (1993),“somos sujeitos porque desejamos, sonhamos, imaginamos e criamos; na busca permanente da alegria, da esperança, do fortalecimento da liberdade, de uma sociedade mais justa, da felicidade que todos temos direito” (p.14)
É, então, a infância do sujeito que determina sua vida adulta? Esta investigação continua. Para Bakhtin (1997), existem três valores biográficos que podem ser percebidos na consciência. Esses valores são estéticos para o sujeito e podem organizar sua representação da vida: a vontade de ter importância no mundo dos outros, a vontade de ser amado e a vontade de viver a diversidade da vida interior e exterior.
A vontade de ter importância no mundo dos outros, é a aspiração de glória que organiza a vida. “Aspirar à glória é ter consciência de pertencer à história da humanidade cultural, é validar e construir sua vida na consciência que se pode ter dessa humanidade, é crescer e engrandecer no outro e para o outro, e não em si mesmo e para si mesmo, é ocupar no mundo um lugar muito próximo dos contemporâneos e dos descendentes” (p.170)
Bakhtin (1997), complementa que o futuro tem, então, uma função organizadora, para aquele que sabe o que deseja, que visualiza este futuro, assim sendo o sujeito organiza o viver do presente em função do futuro.“Não se trata, porém, do futuro absoluto do sentido, mas do futuro (o amanhã) temporal, histórico, aquele que não nega, mas prolonga organicamente o presente. (...) A percepção orgânica de si mesmo integrado à história da humanidade heroificada, da qual o indivíduo participa, na qual se engrandece, através da qual pensará seus trabalhos e seus dias...” (p.170/171)
Estes movimentos sustentam também os outros dois valores citados, a vontade de ser amado e a vontade de viver a diversidade da vida interior e exterior.
Sobre a vontade de ser amado, diz este autor: “O desejo de ser amado, a consciência, a visão e a forma que se pode ter na consciência amorosa do outro, a vontade de fazer desse amor almejado do outro a força organizadora e motriz da vida, tudo isso é ainda uma maneira de crescer e se engrandecer no clima da consciência amorosa do outro (...) o amor determina-lhes a tensão emocional na medida em que pensa e condensa os detalhes internos e externos dessa vida.”(p.171)
O sujeito, então se preocupa com seus aspectos externos, como o modo de vestir-se, sua aparência, para merecer o amor do outro.
A vontade de viver a diversidade da vida interior e exterior, é apontada por este autor como a alegria de viver, o que não é sinônimo de vitalidade biológica. Vai além disso: é quando o viver é percebido como valor.
Partindo destes pressupostos, percebendo-me pesquisador, sujeito a inquietações diante do percebido, apresento minha hipótese:
A criança admira-se com coisas simples, que para o adulto são sem importância. A ação de admirar-se provoca o movimento de conhecer, de se perceber integrada no social. No convívio social, admira-se com personagens que se destacam como heróis biográficos, ou seja, aqueles que de alguma forma também provocam a admiração no adulto. O desejo de ocupar este lugar organiza a narrativa de sua vida, “o futuro, o amanhã, temporal, histórico aquele que não nega, mas prolonga organicamente o presente”. Em síntese, a admiração vivida na infância, aciona o futuro, que passa a organizar o presente. É, portanto, a educação infantil o tempo de admirar-se, a escola deve, então, ser um espaço de admirações. Assim fazendo, educadores estarão possibilitando às crianças a oportunidade de conhecer diferentes heróis biográficos.

Referências Bibliográficas

ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da família. Rio de janeiro: LTC- Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1981.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal 2 ed. São Paulo. Martins Fontes, 1997.

BARROS, Frederico Pessoa de. Poesia e vida de Castro Alves. São Paulo: Edameris, 1962

BARROS, C. Paula. Extratos de “O Romance de Villa-Lobos. In MEC/ DAC/MUSEU VILLA-LOBOS. Villa-Lobos, Sua Obra. Programa de Ação Cultural, 1972

BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis, Rio de Janeiro; Vozes. 2000.

CAMPOS, Lucia Maria da Costa. De volta à escola: uma evolução da nossa sociedade. Trabalho de Conclusão do Curso Normal Superior. Niterói RJ: Biblioteca do Centro Universitário Plinio Leite – UNIPLI 2001

CAVALHEIRO, Edgard. Monteiro Lobato, Vida e obra. São Paulo: Brasiliense, 1962

CIVILETTI, Maria Vitória Pardal. A Creche e o Nascimento da Nova Maternidade, Dissertação de Mestrado em Psicologia Instituto Superior de Estudos e Pesquisas Psicossociais da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 1988.

FREIRE, Madalena. O Sentido Dramático da Aprendizagem. In GROSSI e BORDIN (orgs). Paixão de Aprender. Petrópolis Rio de Janeiro: Vozes, 1993.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

GAARDER, Jostein. O Mundo de Sofia: Romance da história da filosofia.. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

GADOTTI, Moacir. Paulo Freire uma biografia. São Paulo: cortez: Instituto Paulo Freire; Brasília, DF: UNESCO, 1997

KISHIMOTO, Tizuko Morchida. Jogos Infantis: o jogo, a criança e a educação. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1999.

KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

LEAL, Antonio. Fala Maria Favela: Uma Experiência Criativa em Alfabetização. Rio de Janeiro: Uzina de Cultura e Editora de Livros Ltda, 1982.

LEMME, Paschoal. Memórias 1.São Paulo: Cortez: [Brasília, DF]:INEP, 1988.

MENEZES, Raimundo de. José de Alencar: literato e político. Rio de Janeiro: Livro Técnico e Científico, 1977

MPB COMPOSITORES. Dorival Caymmi Rio de Janeiro: Globo, nº 14, 1996

____________________. Vinicius de Moraes. Rio de Janeiro: Globo, nº 18, 1997

NOGUEIRA, Adriano (Org.) Contribuições da interdisciplinaridade: para a ciência, para a educação, para o trabalho sindical. 1 ed. Petrópolis-RJ: Ed. APP Sindicato, 1994.

PEREZ, Renard. Escritores brasileiros contemporâneos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971

PINTO, Maria do Carmo Maiolino. A importância da ação de ler. Trabalho de Conclusão do Curso Normal Superior. Niterói RJ: Biblioteca do Centro Universitário Plinio Leite – UNIPLI 2001

VYGOTSKY, L. S. A formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

Artigo publicado na Revista Pedagógica . v.9 . Nº 53. set/out. 2003 . Belo Horizonte MG, editora Dimensão.








Nenhum comentário:

Postar um comentário